AS CHEIAS DE OUTRORA
O São Francisco e o Boacica são os dois principais rios que passam pelo munícipio de Igreja Nova, implicando diretamente na cultura, renda e geografia da região. Antes da construção de represas, a planície aluvial de Igreja Nova ficava inundada naturalmente, ocasionando as cheias tão lembradas pela população mais antiga.
Até o fim dos anos 70, a cidade se preparava anualmente para os períodos das cheias dos rios, que concentravam suas águas periódicas na várzea. Tendo seu início geralmente no mês de novembro e seu fim entre os meses de fevereiro e março, podendo variar devido ao período das chuvas. A infraestrutura do município era construída seguindo os limites das águas, que ocasionalmente, quando as cheias eram vigorosas, ultrapassavam os casarões da parte baixa, causando vários prejuízos para a população.
Dentre as diversas cheias ocorridas no século XX, destaca-se a de 1945, durante a administração de Guilherme Moreira. Neste ano, um aterro que o governo fazia nas cabeceiras do Rio São Francisco rompeu-se, provocando uma enchente súbita, um grande volume de água, que de um dia para o outro encheu a várzea, causando um prejuízo sem igual para os agricultores. Já em 1960, ocorreu a cheia mais marcante, as águas chegaram a uma altura sem precedentes, indo até a metade do comércio. No canto, elas alcançaram a praça. A população chegava a subir no emblemático coreto para saltar nas águas límpidas.
Mas não só prejuízos traziam as cheias, elas também possibilitavam a fartura de peixes e camarões, implicando diretamente na pescaria, mportante fonte de subsistência dos habitantes. Na falta da água encanada, as atividades domésticas eram feitas naquelas águas, assim como a locomoção para os povoados e cidades vizinhas. O povo se deslocava para a parte mais adentro do grande rio em canoas e colhia, em potes de barro, as águas quase que cristalinas para o consumo.
Foi durante o período de inundação que foram transportados fluvialmente alguns materiais utilizados na construção da matriz de São João Batista, como consta na folhinha de 1907. No campo religioso, a procissão fluvial de Bom Jesus dos Navegantes ficou marcada na história. No porto de Igreja Nova, a população de fé fervorosa acolhia a imagem de Bom Jesus dos Navegantes, que saía do Pontal da Ipiranga. Para a festa e especialmente para a procissão, compareciam canoas de vários lugares ribeirinhos. Além da participação religiosa, essas canoas eram estimuladas por uma competição de corrida, que a cada ano ficava mais acirrada. Uma grande embarcação, toda ornada com bandeirolas, trazia as Filhas de Maria, os Congregados Marianos e outras diversas irmandades religiosas. No centro da embarcação vinha o andor com a imagem do Bom Jesus dos Navegantes, seguida de um grande cortejo de canoas, sempre com muitos fogos e vivas.
Durante os meses de março e junho, quando a grande várzea se encontrava seca, a população cultivava o arroz, o algodão e outros diversos produtos agrícolas, sempre temendo que as águas subissem depressa, e consequentemente acabassem perdendo suas safras. O arroz era colhido entre os meses de setembro e novembro, quando o São Francisco e o Boacica já começavam a transbordar.
Às margens das águas misteriosas, em meio a escuridão, uma vez que a energia elétrica só chegou definitivamente no ano de 1967, se tornava o cenário perfeito para várias histórias e lendas que cercavam o imaginário popular. ”Fogos corredores” eram frequentemente vistos sobre as águas, fenômeno que hoje pode ser explicado pelas leis da física.
A presença do São Francisco e do Boacica, tem forte influência no relevo de Igreja Nova, principalmente na planície. É uma planície inundável, com cotas, altímetro inferior a 003 metros, e predominância de sedimentos argilosos e siltosos, com exceção da área próxima ao Rio São Francisco, onde existe sedimentos arenosos e micro relevo acentuados.
As grandes cheias impactaram também no solo da região. As terras formadas de solo de massapé e de pequenas elevações, que não ultrapassavam a 100 metros de altitude, servem de base para a economia açucareira, pecuária e vegetação plantada pelo homem. Do solo argiloso eram confeccionados jarros, vasos, panelas e objetos de cunho artesanal. Nesse processo, se destaca as “louçeiras” da Rua São Bento, assim eram chamadas as artesãs que ganhavam a vida fabricando e vendendo seus produtos de barro, em feiras e festas religiosas.
As cheias dos Rios São Francisco e do Boacica, são documentadas desde a fundação do município de Igreja Nova. Os índios de etnia caeté já usufruíam dessas águas, assim também como os pescadores saídos de Penedo, que em canoas, chegaram nas terras igreja-novenses e deram origem a povoação. A última enchente cujas águas eram oriundas do Velho Chico em conjunto com o Boacica ocorreu em 1978. No ano seguinte, a Codevasf, para regulamentar as cheias no Baixo São Francisco, começa a implementar um projeto para operar a barragem de Sobradinho, e edifica cerca de 46,6 km de diques para isolar a várzea do rio. Desta maneira, as águas do São Francisco não chegam a inundar a várzea, com isso, a rizicultura ganhou destaque, com duas safras anuais. Para regulamentar as águas do Boacica, foi construída entre 1981 e 1984 a barragem Boacica. Junto a construção foi implementado um projeto de proteção, drenagem e irrigação do rio.
RESGATE DA TRADIÇÃO
Em 2022, após 44 anos sem procisão fluvial, as fortes chuvas que cairão no município, provocando enchentes na parte baixa de Igreja Nova, permitiram que a a comunidade católica do povoado Ipiranga, realizasse, no dia 12 de junho, a histórica procissão com a imagem de Bom Jesus dos Navegantes. A última ocorreu em 1978, mas com o desvio do Rio São Francisco, as embarcações deram lugar a veículos, que fazem o antigo percurso de forma terrestre. O cortejo que originalmente saia do Pontal da Ipiranga para Igreja Nova, desta vez, saiu da capela de São José, com destino a capela de Bom Jesus, onde ocorreu uma missa.
Texto: Mathews Gomes
Fotos: Acervos
Revisão: Raphaella Aguiar